Mais por saudosismo que por necessidade real, ele tirou a noite para procurar um antigo livro do curso de engenharia que, lembrava-se, tratava do mesmo assunto que iria levar para seus alunos na próxima aula. Havia feito nele algumas anotações e os exercícios, que seriam bem esclarecedores para os objetivos que tinha a alcançar com o modulo atual. Estava concentrado em folhear livro por livro de sua biblioteca quando viu uma folha, cuidadosamente dobrada, cair a seus pés. Surpreso e curioso, abaixou-se para ver de que se tratava. Quando abriu, viu a caligrafia redonda e miúda que se desenhava sobre o papel. Depois seus olhos começaram a correr pelas linhas de uma carta de amor, onde quem a escreveu desabafava sua saudade e confessava um amor tão imenso que, sem perceber, ele sentiu-se sugado por antigas e doces lembranças.
O nome ao final da carta trouxe-lhe a certeza de recordações que foram ficando mais nítidas, quanto mais ele lia. Viu-a de novo à sua frente – rosto moreno, corpo de formas arredondadas, sorrisos e lágrimas fáceis, provavelmente aumentados pelos hormônios da adolescência. Seu nome era Alice. A deles poderia ser mais uma história banal - com princípio, meio e fim, se não fossem alguns pequenos detalhes, que se revelaram desde o primeiro instante. Ele se apaixonou por ela logo que a viu. Aquele foi um momento inesquecível, que parecia mais um reconhecimento mútuo que propriamente um primeiro encontro. Ele teve certeza que ela era a mulher que esperara em toda sua curta vida de 17 anos! O encantamento foi tão forte que não teve outra alternativa senão se entregar ao sentimento de amor recém descoberto - única maneira de assumir o papel de protagonista naquela história romanceada. Sentiu-se naturalmente aturdido, ao constatar que tudo aquilo com que sempre sonhara, se materializava diante de seus olhos. Pela primeira vez comprovou que, quando a gente quer muito uma coisa, acredita plenamente no que vê e sente. Afinal, “perder o equilíbrio por amor, faz parte de viver uma vida equilibrada”, já disse algum escritor famoso. Para ele ficou a dúvida se tudo que viveram foi real mesmo ou se foi apenas o sonho dentro do primeiro sonho. Mesmo sem garantias absolutas, acreditaram que seriam felizes para sempre! Traçaram planos; promessas e juras de amor foram trocadas. O encontro deles parecia ser um acontecimento predestinado.
Porém, mesmo diante de um amor assim, a vida não poupou suas surpresas e desmanchou os planos que pareciam imutáveis. Em certo ponto da história o romance terminou e foi preciso voltar a encarar a vida real. Cada um foi trilhar seu próprio caminho e viver sua própria realidade. Nada mais sabe sobre ela – onde está, como está. Apesar da dor da separação, precisou seguir em frente com sua vida.
Já se passaram muitos anos, desde aquele tempo. Hoje vive a sua própria realidade. Mas, diante daquela carta de amor antiga, surge nele a sensação estranha de que nada do que vive agora é completamente real. Afinal, talvez o presente seja apenas o sonho dentro de outro sonho - não ainda o sonho final...
Neste momento o telefone toca. Demora a se levantar da cadeira, para ver se a pessoa desiste, mas ele continua a chamar insistentemente. Resolve atender, desgostoso de que viessem interromper o fio de suas lembranças.
- Alô... diz ele secamente.
- Alô, responde a voz do outro lado. Posso falar com Lucas?
- É ele. Quem fala?
- Oi, Lucas! Que alegria poder falar com você, depois de tantos anos! Talvez você não se recorde de mim... Meu nome é Alice...
- ...
- Alô? Lucas? Você está aí?
- ...